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Crer, Torcer, Distorcer

| segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
- por Hilário Franco Júnior

Seguir determinado clube é acreditar, mesmo contra evidências racionais, que ele vá vencer. Como o futebol é jogo de muitos erros (sessenta passes errados numa partida é algo comum no Brasil) e pouca pontuação (mais de três gols em uma partida não é frequente), mantém o torcedor em constante expectativa. Impotente na arquibancada, o adepto de um clube crê que sua fé e seu estímulo possam colaborar para que seus ídolos levem a divindade comum à vitória. É significativo em português o uso da palavra "torcer" para designar o ato de manifestar adesão entusiasmada à trajetória esportiva de um clube. Conta-se que a origem da acepção futebolística do termo vem do hábito de moças simpatizantes do Fluminense contorcerem durante as partidas pequenas fitas roxas, semelhantes às usadas na cintura pelo goleiro do clube nos anos 1914-22, Marcos Carneiro de Mendonça. De toda forma, uma das acepções dicionarizadas de "torcer" é "desvirtuar o significado ou a proporção real de algo". No mundo do futebol, é interpretar os fatos segundo a emoção.Torcer é sempre distorcer, portanto.
É possível entrever o significado do futebol para cada povo por meio das palavras que expressam o ato de apoiar o time escolhido. Análise que pode ensinar muitas coisas, desde que não esqueça que a intensidade do sentimento religioso é muito pessoal, e no caso do futebol proporcional à paixão clubística. Para o fanático fluminense Nelson Rodrigues, 'o que nós procuramos no futebol é o sofrimento. As partidas que ficam, que se tornam históricas, são as que doem na carne, na alma'. É isso que faz algumas vezes a passio do fiel ser transferida para o oficiante. É comum, como se sabe, um jogador durante certo tempo encarnar o clube, ser a figura mais representativa dele, por isso adorada, e em outros momentos ser rejeitada, vaiada, xingada, fisicamente agredida. Fenômeno semelhante ao da religiosidade popular convencional. A imagem de um santo é reverenciada enquanto o devoto acredita que ela atende seus pedidos, porém é colocada de ponta-cabeça, escondida, quebrada, quando não mais satisfaz as expectativas que se depositam nela.
Se as torcidas cantam, agitam bandeiras, gritam slogans, antes que seus times entrem em campo, é porque se exibem para si mesmas, incentivam a si próprias, tentam intimidar as outras. Não é por impropriedade discursiva que se diz que "meu" time ganhou do "seu", que "meu" Deus é superior a todos os outros. Os pronomes possessivos revelam aí profundo sentimento de identificação, seja com a divindade clubística, seja com a divindade convencional. Em última análise, todo adepto do futebol torce para si próprio devido a uma identificação com o clube tão enraizada quanto a de qualquer outro fiel que encontro no seu Deus a si mesmo. A distorção egocêntrica está presente nos dois casos e pode atingir dimensões paranóicas, dependendo das circunstâncias nas quais tal sentimento é exteriorizado.
De fato, futebol não é sistema religiosos autônomo e coerente de representações, crenças e práticas, é antes mosaico constituído de peças de variadas procedências. Ele não propõe uma visão transcendental do mundo, um futuro melhor a seus seguidores. Isso é impossível, pois a vitória ininterrupta de um deus provocaria a extinção dos outros e, por conseguinte, a do próprio vencedor. Deseja-se a destruição do rival, mas precisa-se dele para que a existência da própria divindade adotada tenha sentido.
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Estranho Mundo - Parte Dois

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Perdeu alguma coisa? Parte Um
No exato instante em que o barulho do despertador acordava Patrick para aquele que seria o dia mais importante de sua vida, há algumas quadras daquele lugar uma garota chamada Eleanor, que dormia sobre uma escrivaninha amparada sobre as páginas de 'Admirável Mundo Novo', recebia as lambidas de Ringo, um gato da raça chartreux, anunciando que um novo dia estava a caminho. Eleanor era uma menina franzina, com o cabelo na altura dos ombros e um olhar perdido e solitário. Ao acordar com aquela sensação gelada lambendo o seu queixo pode ainda contar alguns segundos antes que seu rádio relógio explodisse ecoando 'Good Morning, Good Morning', dos Beatles, pelo quarto inteiro.
Eleanor é uma menina solitária, dessas que andam sozinhas pelas ruas abraçadas a livros escritos por gente que já morreu há muito tempo. Seus pais são separados e ela é criada pela avó. Não tem amigos, conversa pouco. Às vezes passa dias inteiros sem trocar uma palavra com ninguém. Ringo é seu único companheiro, um gato discreto com um sorriso encantador. Eleanor o havia encontrado tempos atrás em frente a uma loja de discos no centro da cidade. Ringo parecia esperar por ela. A menina saiu da loja agarrada a 'Yellow Submarine' em uma das mãos e o gato a seguiu até o caminho de casa.
A noite anterior havia sido preenchida pela leitura daquele livro que falava de um mundo novo, que já não era tão novo assim. Aldous Huxley era uma das figuras que estampavam a capa de 'Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band' e só esse feito já seria necessário para que Eleanor se interessasse por toda sua obra. Ao acordar naquela manhã, ainda contando os segundos para mais uma explosão de seu despertador, Eleanor pode perceber que o gato lhe chamava a atenção para um calendário a poucos centímetros do seu nariz. Aquele era dia dez de abril, fatídico dia que os quatro rapazes de Liverpool decidiram ir cada um pro seu canto há alguns anos atrás, e dia do seu aniversário.
Eleanor fechou os olhos por alguns instantes tentando absorver aquela informação. Estava completando dezessete anos de idade. Nos últimos anos para comemorar sua avó fazia um bolo de cenoura e comprava uma coca cola dois litros. Naquele dia ninguém lhe telefonava, não havia 'parabéns pra você', não havia presentes. Sua avó sentava num canto da mesa e enquanto mordia aquele bolo sem gosto de nada com sua dentadura, assistia a um desses programas do mundo das celebridades que passam na televisão. O aniversário acabava e a coca cola ainda estava pela metade.
O despertador tocou e Eleanor saltou da cadeira com uma estranha sensação de que aquele dia seria diferente dos demais. Se abraçou a Ringo agradecendo a lembrança do aniversário, que tratou de ronronar fechando os olhos, e arrumou sua mochila a tempo de ir à escola. Eleanor estava feliz. Pedalava a todo vapor pelas ruas da cidade cantando 'Here Comes the Sun', com aquele pressentimento confuso de alegria. Era uma menina de dezessete anos, quase uma mulher. ainda tinha dentro de si uma vontade absurda de fazer um monte de coisa e aquele seria o primeiro dia do resto da sua vida. Enfim, o sol viria.
De repente já no portão da escola, pedalando e cantando completamente desligada do mundo ao seu redor, Eleanor não pode perceber a presença daquele menino estranho que caminhava em passos largos bem à frente de sua bicicleta. Numa fração de segundos, num daqueles momentos mágicos que ficam guardados na memória da gente até o dia da nossa morte, Eleanor havia atropelado Patrick e aqueles dois sujeitos desconhecidos estavam jogados no chão um sobre o outro. A menina, ao sentir a presença de Patrick grudado ao seu corpo, ainda teve forças pra cantar bem baixinho no seu ouvido:
- Here comes the sun, and i say it's all right!
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Mr. A-Z

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No dia 13 de maio de 2008, dia do meu aniversário de vinte e um anos, um americano nascido na virgínia chamado Jason Thomas Mraz lançaria um album que figuraria, dentro do meu universo, como um dos maiores da década.
'We sing. We dance. We steal things' já vendeu quase um milhão de cópias pelo mundo. O título do álbum viria de uma peça do artista plástico David Shrigley, que Mraz conheceria em uma viagem à Escócia e que viria a ser o responsável pela capa de seu disco.
"I'm yours", sua primeira música de trabalho, figurou praticamente o ano inteiro entre o Top 10 da Bilboard Magazine (foi a música mais tocada do ano nos Estados Unidos, na Alemanha, na Itália, na Argentina, na Noruega, na Nova Zelândia, na Suécia e na Áustria) e ainda ganharia o Grammy Awards na categoria 'Música do Ano'.
Depois de ter passado quatro anos do lançamento de seu primeiro álbum ('Waiting for my Rocket to Come'), com hits como "You & I Both" e "Remedy (I Won’t Worry)", e de logo em seguida ter lançado seu segundo álbum ('Mr. A-Z'), que deu continuidade ao sucesso do primeiro, com novos hits e uma indicação ao Grammy Awards, Mraz decidiu parar. Queria cuidar do seu gato e do seu jardim, queria poder voltar a andar nas ruas, lavar sua roupa, fazer compras no supermercado, queria voltar a fazer coisas simples. E após uma interminável pausa de um ano na carreira, longe dos estúdios, dos palcos e dos programas de televisão, Mraz despertaria para redescobrir sua música.
- De repente eu acordei e músicas de verdade começaram a brotar de mim. Músicas que eu não tinha planos de compor. Mas isso acabou se tornando uma reflexão de como me sinto, do humor em que estava e desses despertamentos que eu estava tendo. Por esses momentos de auto-realização, auto-poder e auto-aperfeiçoamento, fiquei feliz em poder fazer um álbum ao mesmo tempo em que estava voltando ao planeta terra.
O disco ainda ganharia as participações especiais de Colbie Caillat (na canção "Lucky", feita pelos dois) e de James Morrison em "Details in the Fabric" (cantor britânico que despertou no nosso cenário com seu primeiro Hit pouco tempo atrás, "You Give Me Something").
'We sing. We dance. We steal things' é impecável do início ao fim; da primeira letra da primeira música, aos arranjos, os solos dos metais, na voz de Jason, na composição de suas músicas, e na leveza com que carrega uma obra que viria a ser o grande álbum de sua curta carreira, e que iluminaria o meu playlist musical por um bom tempo.
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Bus Driver

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- por Gay Talese

Os 10 mil motoristas de ônibus de Nova York enfrentam todo dia o pior trânsito do mundo, ao mesmo tempo que são insultados por velhinhas, enganados por estudantes, fechados por táxis e obstruídos por caminhões; tudo isso enquanto dirigem com uma mão e dão o troco com a outra, entregam bilhetes de baldeação, respondem perguntas, se apressam para pegar o sinal verde, procuram cumprir o horário, evitam os buracos da companhia de eletricidade, pedem aos passageiros que se dirijam para o fundo do ônibus, ouvindo o contínuo tilintar da campanhia de parar e sofrendo de dor nas costas, úlceras, hemorróidas ou um desejo quase incontrolável de enfiar o ônibus num muro de pedra e sair andando. Apesar de todo esse tormento e labuta, o motorista de ônibus de Nova York continua a ser, em grande medida, uma pessoa anônima que passa a vida mostrando apenas metade do rosto no retrovisor. Ele nunca terá o prestígio dos motoristas dos vistosos Greyhound, que usam quepe e disparam feito pilotos, ou dos motoristas de ônibus de subúrbio, que são chamados pelo nome pelos passageiros e ganham presentes no Natal; ou ainda dos motoristas de ônibus de excursão, que levam as pessoas a piquiniques e em geral são convidados a participar; tampouco dos motoristas de ônibus escolares, que eventualmente podem bater num passageiro barulhento e não sofrer nenhuma punição, se o departamento de Educação local não for progressista demais. O motorista de ônibus de Nova York é subestimado. Quando levanta os olhos para o retrovisor, ele ve a multidão dos que pegam quinze centavos e o ignoram. Ele os ve olhando através da janela, olhando para os próprios pés ou tentando ler o jornal de outras pessoas. Ele ve um boy desgrenhado apertando os olhos para ler um envelope pardo, uma senhora gorda segurando a sacola de compras enquanto disputa com um homem o único lugar vazio no ônibus. Ve passageiros de pé, pendurados nas alças como quartos de boi no açougue, e os odeia porque se recusam a sair do lugar quando ele pede pela enésima vez: “Um passinho à frente, por favor, tem bastante lugar no fundo do ônibus.” Os passageiros o ignoram, e continuarão a ignorá-lo até o momento em que ele perturbe a paz deles - ao dar uma freada brusca, ao deixar de responder uma pergunta ou de parar num ponto quando eles tocam o sinal. Dia após dia os motoristas padecem dessa rotina interminável, sabendo o que esperar - e quando - dos 3 milhões de nova-iorquinos que andam de ônibus a cada dia da semana. Às seis da manhã, por exemplo, os motoristas de ônibus pegam telefonistas, enfermeiras, empregradas domésticas, empregados de hotel; depois deles, às sete horas, é a vez dos comerciários, estivadores, ascensoristas e uma infinidade de outros leitores da imprensa marrom que entram no serviço antes das oito. Durante essas horas ouve-se o ruído ininterrupto de moedas tilintando dentro da caixinha de dinheiro, porque esses passageiros das primeiras horas, que também pertencem à classe trabalhadora, procuram facilitar a vida do motorista trazendo a quantia exata da tarifa. O trabalho do motorista de ônibus só começa a ficar desagradável às oito da manhã, quando os estudantes, livros debaixo do braço, começam a entrar, abrindo caminho a cotoveladas. Às nove da manhã, o ônibus fica repleto de secretárias, de recepcionistas e de perfume. Às dez, as secretárias executivas (que trabalharão até as seis) e funcionários de escritórios que ainda não se podem dar ao luxo de andar de táxi, e também as primeiras vagas da maior bête noire dos motoristas de ônibus - as senhoras que vão às compras.”A senhora que vai às compras pode estar com a bolsa tilintando, cheia de moedas, mas me dá uma nota de cinco dólares”, diz Barney O’Leary, que começou como motorneiro em Nova York, há 34 anos, e parece ter acabado de sair de O Delator. “Ou então ela está com uma amiga e diz: ‘Pode deixar, Sophie, eu tenho’. Aí ela põe a luva na boca e começa a procurar moedas - enquanto todo mundo espera do lado de fora, na chuva.” “Quando chego num ponto cheio de gente”, continua ele, “a primeira fila é invariavelmente uma mulher carregada de compras. Quando entra no ônibus ela põe os embrulhos no chão, fica remechendo na bolsa e, depois que lhe dou o troco, me pede um bilhete de baldeação de três centavos. Assim, tenho que arranjar troco pra ela duas vezes! Claro que quando pede o bilhete de transferência ela sussurra, a gente mal pode ouvir, mas quando ela xinga, o ônibus inteiro ouve.”"Essas mulheres são tão más”, acrescenta ele, “que em Nova York os homens não lhe dão mais lugares. Eles sempre se sentam no fundo do ônibus e fingem que não estão vendo as senhoras no pé do corredor. Ou então enfiam a cara em jornais, tiram um pedaço de papel do bolso e fingem estar ocupados em escrever coisas importantíssimas. Muitas vezes os homens ficam tão preocupados em manter o assento que deixam o ponto passar.” Para os motoristas que conseguem aguentar o tranco, o trabalho dá uma certa segurança e um salário médio próximo de 120 dólares por semana, incluíndo as horas extras. Os motoristas percorrem cerca de 97 quilometros durante o expediente de oito horas e arrecadam perto de cem dólares em passagens, e tem de prestar contas de cada centavo. Embora existam homens obstinados como Barney O’Leary, que conseguem passar a vida inteira insistindo para que as pessoas passem para o fundo do ônibus, outros há que dão um basta depois de dez ou quinze anos. Esses motoristas trocam de profissão e passam a trabalhar nas viações como mecânicos ou encarregados de manutenção, por exemplo, e muitos deles ficam muito satisfeitos, e até simpáticos - ali, longe da multidão enlouquecedora e do barulho da campainha, longe dos engarrafamentos e das cartas de reclamação, longe das arrogantes freguesas de lojas que, por quinze centavos, pensam poder controlar o destino de um motorista de ônibus.
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O Escafandro e a Borboleta

| sexta-feira, 11 de dezembro de 2009
O ESCAFANDRO E A BORBOLETA
(Le Scaphandre et le Papillon - França) de Julian Schnabel, 2007. IMDB - 8.1
Com Mathieu Amalric, Emmanuelle Seigner, Marie-Josée Croze, Anne Consigny, Max von Sydow.

- Recebeu 4 indicações ao Oscar, nas categorias de Melhor Diretor, Melhor Fotografia, Melhor Edição e Melhor Roteiro Adaptado.
- Ganhou 2 Globos de Ouro, nas categorias de Melhor Diretor e Melhor Filme Estrangeiro. Foi ainda indicado na categoria de Melhor Roteiro.
- Ganhou o BAFTA de Melhor Roteiro Adaptado, além de ser indicado na categoria de Melhor Filme Estrangeiro.
- Recebeu 7 indicações ao César, nas categorias de Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator (Mathieu Amalric), Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Edição, Melhor Fotografia e Melhor Som.

Em 1995 Jean-Dominic Bauby, então editor-chefe da revista francesa de moda Elle, sofreu um derrame que lhe deixou em estado vegetativo. Paralisado dos pés a cabeça graças a rara síndrome do encarceramento, Bauby estava aprisionado ao seu próprio corpo. Incapaz de pronunciar uma única palavra, mas com sua consciência intacta, o personagem vivido por Mathieu Amalric aprende a desenvolver com a ajuda de uma fonoterapeuta uma maneira peculiar de se comunicar com o mundo e as pessoas à sua volta - piscando o olho esquerdo, único órgão com mobilidade sobrevivente da emboscada suicída causada por seu corpo. Dessa maneira Bauby consegue estabelecer uma conexão para registrar suas sensações em um livro. Para isso precisaria ditar letra por letra piscando na presença de uma "tradutora". O resultado disso seria a publicação do livro O Escafandro e a Borboleta, dois anos após seu derrame, aclamado pela crítica e pelo público. Bauby morreria dez dias após a publicação de seu livro.
O nova iorquino Julian Schnabel, diretor de Antes do Anoitecer (cinebiografia do poeta cubano Reinaldo Arenas), carrega o filme com leveza, transportando o telespectador para os olhos (e os pontos de vista) de um homem enterrado vivo numa cadeira de rodas. O trabalho lhe rendeu uma indicação ao Oscar e uma estatueta no Globo de Ouro como melhor diretor. Schnabel, que estava há sete anos longe das filmagens, nos conta uma história sobre a força do espírito humano. Ainda que seu personagem parecesse aprisionado por um escafandro - uma armadura de borracha e ferro usada por mergulhadores para trabalhos no fundo do mar -, através da sua consciência e da sua imaginação Bauby era um homem livre como uma borboleta, poderia estar aonde quisesse, sem pudores para dizer o que quer que fosse; desse modo (e só desse modo) a vida consegue ser mais fácil.
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K-Os e a Revolução Musical

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A primeira vez que ouvi esse cara eu tava dentro de um carro e tudo parecia bem devagar - tipo slow motion, saca? -, as pessoas na calçada caminhavam sem pressa, sem direção. Não havia buzinas, carros desgovernados, sirene de ambulância, nada. Eu poderia apostar que pelo menos naquele instante o mundo estava em um silêncio absoluto, se não fosse pela música contagiante que tocava no rádio; se não fosse por K-Os.
É, isso mesmo. O céu parecia se rasgar lá no alto graças a essas três letrinhas que parecem ter saído de alguma nave intergalática de Jornada nas Estrelas e que iriam revolucionar a minha maneira de enxergar a música.
K-Os é um rapper canadense que resgatou tudo aquilo que já havia sido feito na black music - do soul ao r&b -, bateu num liquidificador, acrescentou seus próprios ingredientes e saiu com seu microfone pelo mundo afora. Seus discos são, a meu ponto de vista, as maiores realizações da cultura pop dos últimos anos, e poderia dizer que K-Os está para a black music assim como Beethoven esteve para a música clássica e os Beatles estiveram para o rock n'roll.
Seu visual personifica a nova imagem da cultura de rua, sem o esteriótipo da periferia norte-americana, sem carrões importados, sem mulheres rebolando, sem calças largas, sem exageros. K-Os dignifica o hip-hop. Suas músicas são recheadas com violinos, pianos, bongôs, pickup's, vocais, saxofones e seguem a fórmula sagrada do pop - um ritmo envolvente, refrões que ficam marcados e solos curtos.
Nesse exato instante a revolução musical está acontecendo em algum lugar do mundo. A cada vez que K-Os tocar num player, a cada vez que um disco seu for ouvido pela primeira vez, sua música se transformará numa grandiosa epopéia - uma viagem para o universo musical, dessas que rasgam o céu lá no alto e deixam o tempo mais devagar, parecendo slow motion.


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Estranho Mundo - Parte Um

| quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
Acordou com aquela cara amassada de sono. O lençol agarrado a uma das pernas e o despertador gritando ao lado do ouvido. Todo dia era a mesma coisa - Patrick derrubava aquele relógio estúpido no chão e ainda resmungando aproveitava cada segundo de sono que lhe restasse até que sua mãe, uma luterana gorda de um metro e noventa, invadisse o seu quarto berrando para que ele se arrumasse a tempo de ir à escola. Patrick estava cansado daquilo.
Ainda assustado com a força daquela voz taquara rachada, que ecoaria pelo seu tímpano até o caminho do colégio, Patrick se levanta esticando o braço na direção de um óculos fundo de garrafa que adormecia sobre a cômoda, e caminha em passos lentos rumo ao banheiro xingando mentalmente aquela velha parada em frente a porta de seu quarto com todos os palavrões que conhecia e que eram proibidos de serem ditos dentro daquela casa.
Patrick era um menino de dezesseis anos. Magrelo, com algumas espinhas pela cara, as canelas finas, aparelho nos dentes, o cabelo ruivo despenteado, um óculos que lhe tomava metade do rosto e um ar de fragilidade e insegurança. Ainda não havia sequer beijado nenhuma garota, embora fosse secretamente apaixonado por umas três ou quatro - dentre essas uma vizinha loira que Patrick espiava trocar de roupa da janela de seu quarto, enquanto se masturbava cheirando uma de suas calcinhas, roubada de seu varal numa tarde de domingo. Embora atraísse gente esquisita pro seu lado Patrick não tinha muitos amigos, passava a maior parte do tempo lendo história em quadrinhos e sonhando acordado.
Dentro do ônibus ficava admirando as construções dos prédios enquanto era levado à escola, onde poderia estudar matemática e um dia, quem sabe, construir prédios tão grandes e luxuosos quanto aqueles do centro da cidade. Patrick não gostava muito de cálculos e passava boa parte daquela aula admirando as curvas assimétricas de sua professora. Na verdade ele não se interessava por quase nenhuma daquelas matérias, eram todas tão chatas e pareciam ter tão pouca utilidade em sua vida que Patrick comumente confundia os catetos com os quadrados de qualquer hipotenusa que lhe surgisse pela frente, não sabendo se isso lhe dizia respeito a matemática ou qualquer outra matéria.
Senão bastasse aqueles hormônios todos circulando em rota de colisão pelo seu corpo e as meninas que faziam de conta que ele nunca existiu, embora andassem rebolando a meio metro de seus olhos, senão bastasse sua mãe lhe encomodando desde logo cedo e todas aquelas matérias insuportáveis ao qual era obrigado a ouvir na escola, Patrick agora estava naquela época de decisão. O tempo corria e ele deveria optar pelo quê fazer com sua vida. Ainda criança sonhava em ser um monte de coisa - bombeiro, cientista, piloto de avião, médico, inventor, apresentador de tv -, e agora com quase dezessete anos e um mundo inteiro pela frente Patrick estava sem grandes opções, e enquanto pensava a respeito tratava de descer no ponto de ônibus em frente a escola ainda com aquela voz taquara rachada martelando bem baixinho o seu ouvido. Caminhando com a mochila nas costas, cercado por pontos de interrogação por todos os lados, Patrick mal poderia imaginar que aquele seria o dia mais importante de sua vida.
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Segunda-Feira ao Sol

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SEGUNDA-FEIRA AO SOL
(Los Lunes al Sol - Espanha) de Fernando Léon de Aranoa, 2002. IMDB - 7,7
com Javier Bardem, Luis Tosar, José Ángel Egido, Nieve de Medina, Enrique Villén.

- Recebeu uma indicação ao European Film Awards de Melhor Ator (Javier Bardem).
- Ganhou 5 prêmios no Goya, nas seguintes categorias: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator (Javier Bardem), Melhor Revelação Masculina (José Ángel Egido) e Melhor Ator Coadjuvante (Luis Tosar). Recebeu ainda outras 3 indicações, nas seguintes categorias: Melhor Edição, Melhor Atriz Revelação (Nieve de Medina) e Melhor Roteiro Original.
- Ganhou 3 Kikitos de Ouro no Festival de Gramado, nas seguintes categorias: Melhor Filme - Mostra Latina, Melhor Diretor - Mostra Latina e Melhor Ator - Mostra Latina (Javier Bardem). Ganhou ainda o Prêmio da Crítica - Mostra Latina.

Nunca fui comunista. Vim de uma educação política social democrata e sempre achei a esquerda burra. Ando pelas ruas e vejo os jovens com camisas, bonés, agasalhos e tatuagens de Che Guevara, Cuba, Lenin, Fidel Castro e outros garotos propaganda do comunismo, e penso que toda essa gente acabou se transformando num símbolo de marketing. Acho que a imagem desse pessoal todo é altamente vendável estampada em qualquer coisa.
De qualquer maneira "Segunda-Feira ao Sol", filme dirigido por Fernando Léon de Aranoa, e que tem Javier Bardem em uma das melhores atuações de sua carreira, me fez repensar sobre a cultura do capitalismo.
Um grupo de amigos, todos ex-operários de uma fábrica naval ao norte da Espanha, se reunem em um pequeno bar aonde compartilham suas frustrações e bebem algumas doses de esperança. O bar se transforma na casa de homens de meia idade que, ao terem perdido seus empregos, se sentem deslocados em frente a um universo sem perspectivas. As verdadeiras funções do homem em frente à sociedade, e suas relações com o dinheiro, são tratadas com angústia e humor durante as duas horas de película.
Santa, Lino e José, sob o sol de segunda-feira, começam a semana buscando um sentido à vida.
Santa, personagem de Javier Bardem, é um homem sem dinheiro, solitário e fantasioso que é perseguido por uma ação judicial que lhe condena a pagar US$ 40,00 por quebrar um poste de iluminação durante um protesto. Encarando a vida sem perder o bom humor ele veste as armaduras do anti-herói moderno e seu carisma invade a tela desde a primeira cena.
Lino é um caçador de entrevistas de emprego. Ao se deparar no jornal com um anúncio de trabalho e os requisitos básicos de contratação - ter boa aparência, limite de idade, carro próprio e conhecimentos em informática - luta por um processo de reconstrução da própria personalidade. Tinge o cabelo, inicia aulas de inclusão digital, usa as roupas do filho pra aparecer mais jovem, e caminha em contramão sem saber ao certo que rumo está seguindo.
José se depara com as brigas com a mulher. A partir do momento em que ele deixa de ser o provedor da família passando a conviver com a pressão dela, uma funcionária de uma fábrica de atum, passa a ter um único dilema em sua vida - conseguir um empréstimo no banco de US$ 8.000 para montar um pequeno negócio e fugir do perverso sistema de agências de emprego que anulam homens de meia idade.
"Segunda-Feira ao Sol" é um filme honesto que procura tratar com bom humor questões sociais que assombram quem já passou dos quarenta. O DVD pode ser facilmente encontrado na locadora na seção de Cinema Europeu, na coluna do S, talvez um pouco empoeirado e provavelmente depois de Salomé. Assim que você passar no caixa com ele e for a caminho de casa pode ter certeza de que fez uma boa escolha - a diversão está garantida e o seu cérebro agradece.
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Nasce Uma Estrela

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Nasce uma estrela. O nome dela é Florence Welch, uma inglesinha de vinte e dois anos que acaba de lançar o primeiro álbum de sua carreira e já conseguiu alcançar o topo das paradas britânicas.
Florence And The Machine estourou ao lançar algumas músicas na grande rede através da sua página no Myspace e em shows alternativos patrocinados pela rede BBC. O feito foi suficiente para que a talentosa menina de Londres e seus amigos abocanhassem o prêmio da crítica no Brit Awards 09. "Lungs" logo se tornaria no álbum mais aguardado do ano.
A ruivinha tem uma voz poderosa, uma mistura de Kate Bush com Björk, Annie Lennoux e Adele. De qualquer maneira eu teria a coragem de dizer que ela é melhor do que todas essas sem ficar com a consciência pesada.
Do álbum eu poderia listar pelo menos quatro músicas que ficarão para a eternidade - 'Rabbit Heart (raise it up)', 'Dog Days Are Over', 'Howl' e 'Cosmic Love'. Florence And The Machine ilumina os meus ouvidos como janelas abertas em dias de sol.

Ps: Seus dias estão contados Amy Winehouse!


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Filmes Para Ver Antes de Morrer

| quarta-feira, 9 de dezembro de 2009



















Não vou cometer a heresia de dizer que a lista abaixo trata dos dez melhores filmes de todos os tempos. Muito provavelmente assim que terminar de publicar esse post outros dez filmes irão surgir na minha memória. Essa é uma lista pessoal, de filmes especiais que tiveram importância em determinados momentos da minha vida. Os filmes estão em ordem alfabética. A maioria deles vi mais de uma vez, muitos eu assistiria novamente, outros não. De qualquer maneira se você ainda não viu algum deles procure na locadora mais próxima de sua casa ou faça o download através dos milhões de sites disponíveis na grande rede. Prepare a pipoca, tire o guaraná do congelador e boa diversão!

A Felicidade Não Se Compra (It's a Wonderful Life, 1946. Dirigido por Frank Capra. Com James Stewart, Donna Reed, Lionel Barrymore)

De todos os filmes que tive a oportunidade de assistir na minha vida é o que mais me emocionou. A história é simples - um chefe de família tenta se suicidar na noite de natal e recebe a visita de seu anjo da guarda para tentar lhe convencer do contrário. Apesar de reunir todos os ingredientes possíveis para que Frank Capra conseguisse transformar seu filme numa reunião de clichês, A Felicidade Não Se Compra é comovente e se transformou no maior clássico de natal da história do cinema. Eu revi esse filme um milhão de vezes e poderia dizer que, de alguma maneira, ele já faz parte de mim. IMDB - 8.7 - trailler

Apocalypto (Apocalypto, 2006. Dirigido por Mel Gibson. Com Rudy Youngblood, Dalia Hernandez, Jonathan Brewer)

Confesso que senti medo quando fui assistir Apocalypto no cinema. E não estou falando daquele medo causado por filmes de terror, cheios de maquiagens de catchup e histórias sem pé nem cabeça. O filme de Mel Gibson é uma experiência.
Jaguar Paw é um cidadão que leva uma vida tranquila durante o império maia, até ser capturado pelo exército para sacrificar sua vida em oferenda à prosperidade de seu povo. O personagem se transformou em um dos meus "heróis" favoritos na história do cinema, e passa o filme inteiro lutando por sobrevivência. IMDB - 7.9 - trailler

Central do Brasil (Central do Brasil, 1998. Dirigido por Walter Salles. Com Fernanda Montenegro, Vinícius de Oliveira, Marília Pêra)

Central do Brasil ainda é o meu filme favorito do cinema nacional. E a comovente atuação de Fernanda Montenegro é a melhor que vi em um filme brasileiro. Apesar da derrota no Oscar para o película de Roberto Benigni e a atuação de Gwyneth Paltrow o filme de Walter Salles é um acontecimento da cultura nacional, um divisor de águas.
Uma mulher que escreve cartas para analfabetos ajuda um menino a encontrar seu pai, e junto com a emoção daqueles dois a gente é levado pra dentro do coração do Brasil. A cena final é impecável e a trilha sonora é inesquecível. IMDB - 8.0 - trailler

Dançando no Escuro (Dancer in the Dark, 2000. Dirigido por Lars Von Trier. Com Björk, Catherine Deneuve, David Morse)

A islandesa Björk é uma das maiores cantoras do mundo, e o dinamarquês Lars Von Trier um dos melhores diretores. Apesar das crises entre os dois durante as gravações do filme, Dançando no Escuro é o meu musical favorito do cinema moderno.
Selma está ficando cega graças a um problema hereditário e após guardar dinheiro para realizar a cirurgia de seu filho tem a economia roubada pelo melhor amigo. A história é triste, a trilha sonora é magnífica e a atuação de bjork impressionante. IMDB - 7.8 - trailler

Donnie Darko (Donnie Darko, 2001. Dirigido por Richard Kelly. Com Jake Gyllenhaal, Maggie Gyllenhaal, Holmes Osbornen, Drew Barrymore)

O menino que tem nome de super herói cursa o colegial e despreza a maioria das outras pessoas. Donnie Darko tem visões com um coelho gigante que só ele consegue ver, que o obriga a fazer brincadeiras destrutivas com quem está ao seu redor. E então, num belo dia, ele descobre que o mundo irá acabar em um mês e precisa fazer alguma coisa pra evitar isso.
O filme de estréia de Richard Kelly conseguiu propaganda boca a boca, apesar de seu orçamento irrisório, e se tornou num cult do cinema moderno. O final ninguém mata. IMDB - 8.3 - trailler

Ed Wood (Ed Wood, 1994. Dirigido por Tim Burton. Com Johnny Depp, Martin Landau, Sarah Jessica Parker, Patricia Arquette)

Ed Wood foi o pior diretor da história de hollywood. E apesar dos seus filmes serem de péssima qualidade, essa pequena obra prima feita por Tim Burton que retrata a sua vida e suas tentativas frustradas de ser um grande diretor de cinema é uma declaração de amor à sétima arte.
Convivendo com atores de quinta categoria e alguns pedaços de gravações de um Bela Lugosi já em fim de carreira (interpretado brilhantemente por Martin Landau), Ed Wood realiza feitos incríveis como Plan 9 From Outer Space (eleito o pior filme da história do cinema) e Glen or Glenda? (autobiográfico sobre seus desejos de se vestir de mulher). IMDB - 8.1 - trailler

Magnólia (Magnolia, 1999. Dirigido por Paul Thomas Anderson. Com Tom Cruise, Julianne Moore, William H. Macy, Philip Seymour Hoffman)

Paul Thomas Anderson é um dos melhores diretores/roteiristas do mundo. Não apenas porque ele cria histórias surpreendentes com diálogos maravilhosos, mas porque consegue tirar o melhor de cada ator que participa de seus filmes, com longas tomadas de câmera revelam o seu perfeccionismo.
A princípio seria muito chato assistir a esse dramalhão com quase três horas de duração e um final aparentemente tão absurdo, mas a julgar como o melhor filme de um dos melhores diretores de Hollywood... Magnólia não pode passar em branco. Coisas acontecerão.
Ah! Esse é um filme extremamente pessoal e um dos meus favoritos da lista. IMDB - 8.0 - trailler

O Fabuloso Destino de Amelie Poulain (Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain, 2001. Dirigido por Jean-Pierre Jeunet. Com Audrey Tautou, Mathieu Kassovitz)

Durante muito tempo eu quis casar com Amelie Poulain, e às vezes ainda divido desse sonho. Eu poderia dizer que a Amelie Poulain é o meu amor platônico. Não apenas porque ela é linda e encantadora, e poderia ter saído de um livro da Clarice Lispector, mas porque o filme sobre sua vida é lindo e encantador. Se O Fabuloso Destino de Amélie Poulain fosse uma escola de samba e eu fosse um jurado de carnaval seria muito difícil não dar nota dez para roteiro, fotografia, atuação, trilha sonora, direção, e tudo aquilo que cerca esse filme. O cinema francês conseguiu realizar um dos pequenos achados da cultura moderna. IMDB - 8.6 - trailler

Um Sonho de Liberdade (The Shawshank Redemption, 1994. Dirigido por Frank Darabont. Com Tim Robbins, Morgan Freeman)

O Internet Movie Database (IMDB) é o maior site de cinema do mundo. Todos os dias milhões de pessoas no mundo todo comentam, analisam e dão notas para os 57 milhões de filmes disponíveis na base do site. Uma sessão muito especial diz respeito aos 250 mais bem votados filmes de todos os tempos. Um Sonho de Liberdade, adaptado do conto de Stephen King que narra a história de um banqueiro condenado à prisão perpétua pelo assassinato de sua esposa, é o filme mais bem votado da lista. Preciso dizer alguma coisa? IMDB - 9.2 - trailler

12 Homens e Uma Sentença (12 Angry Men, 1957. Dirigido por Sidney Lumet. Com Henry Fonda, Martin Balsam)

Doze jurados devem decidir se um homem é acusado ou não de um assassinato que poderá leva-lo à pena de morte. A história é simples e se passa quase que por inteiro dentro de uma única sala, com os mesmos atores, como uma peça de teatro filmada. No entanto 12 homens e uma sentença, além de ter um dos melhores roteiros da história do cinema, com atuações brilhantes e um final surpreendente, domina a arte de conquistar a atenção de seu telespectador e é uma aula sobre retórica. O remake americano e a refilmagem russa são espetaculares também. IMDB - 8.9 - trailler
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Cenas de Um Filme Que Nada Acontece

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São quatro horas da madrugada. Em uma cidade da América Latina, numa travessa qualquer, um gato cinzento lambe um prato de comida abandonado na boca de um lixo. É uma dessas noites perfumadas de estrelas e um letreiro digital cercado por mosquitos acusa a temperatura de dezesseis graus. A umidade relativa do ar está em sessenta e três por cento. E enquanto um carro em alta velocidade atravessa o semáforo vermelho atropelando uma poça d'água, dois mendigos dividem o último gole de uma cachaça vagabunda e dormem abraçados em frente a fachada de um banco. A poucos metros um cachorro vira lata atravessa a rua e observa à distância quatro lâmpadas coloridas serem apagadas em um bordel, indicando que o último cliente já havia ido embora. Um vigia noturno dorme abraçado sobre um balcão de informações ao lado de um rádio relógio ligado num programa de notícias sem ninguém pra ouvir. São quatro horas da madrugada. É cedo demais pra quem está acordando e tarde demais pra quem está indo dormir.
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Orkut

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O orkut é composto por meninas que tiram fotos fazendo biquinho em frente ao espelho do quarto. E de gente colorida, cheia de frescura, que arranca frases de uma poesia qualquer de algum escritor consagrado, pra encher linguiça na descrição do perfil. O orkut é recheado de comunidades que não dizem nada, com fotos de bebês obesos e tópicos estúpidos, de gente popular mal humorada que fica enfurecida quando são adicionados por desconhecidos que não deixam mensagem na sua página de recados. O orkut é terra de gente que não consegue tirar uma foto três por quatro sem aquele retoque mirabolante de algum programa de edição de imagens, de pseudointelectuais que frequentam comunidades de escritores que todo mundo conhece e ninguém leu, de gente gorda que tira foto de perfil escondendo o corpo, e de gente que não tem muita coisa pra dizer e que se limita dizendo que se descrever é para os fracos. O orkut é a plataforma para que as meninas mais ou menos possam fazer pose de modelo, para que quase famosos possam exibir a sua rede social com quatro perfis diferentes, suas centenas de comunidades e milhares de fotos, para que pessoas sem muita coisa pra fazer possam enviar as suas mensagens que tomam metade da tela da página de recados, com aquelas imagens cafonas.
Apesar disso o mundo é divido entre as pessoas que tem orkut e as pessoas que não tem orkut. O orkut é uma espécie de identidade virtual aonde as pessoas se sociabilizam, trocam experiências, se comunicam, compartilham coisas. E então gente que a gente não vê há um tempão aparece do nada, músicos independentes conseguem mostrar o seu trabalho, escritores de gaveta publicam as suas coisas, e a gente descobre um universo de pessoas sozinhas em frente à luz do monitor de seus computadores.
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A Mulher Mais Feia da Cidade

| terça-feira, 8 de dezembro de 2009
Raimunda é a mulher mais feia da cidade.
Manca de uma das pernas, pesando cento e vinte quilos em um corpo deformado de um metro e cinquenta e oito, é quase cega do olho esquerdo, tem problemas intestinais e ainda não sabe o que é o amor. Se não bastasse a desgraça de nascer feia e motivo de piada entre as crianças do bairro aonde mora, Raimunda é a filha caçula de uma família pobre da periferia que, sem dinheiro para comprar roupas, lhe veste com alguns panos remendados usados por suas irmãs mais velhas. Seu pai é um cobrador de ônibus que intercala o tempo de trabalho com algumas doses de vinho barato. Sua mãe é zeladora em uma escola pública.
Raimunda possui imensas papadas debaixo do braço que lhe impedem de raspar os pêlos de suas axilas. A tarde, caminhando de volta pra casa do curso de operadora de telemarketing que realiza numa escola profissionalizante, o suor lhe escorre pelo corpo, melando sua imensa barriga, e Raimunda fede o cheiro de uma menina sem dinheiro para comprar cremes, perfumes ou qualquer produto de beleza que recheie os catálogos de suas vizinhas vendedoras. Ela já foi recusada em três entrevistas de emprego com a desculpa de que sua voz é inaudível, como quem tem um ovo preso à garganta.
Ainda pequena Raimunda começou a desenvolver uma doença incurável em seu intestino, que lhe faz permanecer durante horas despejando toda podridão que possa existir dentro de um ser humano. Durante esse tempo acostumou-se a levar um bloco de notas e uma caneta para o banheiro, e enquanto seu corpo tratava de jogar fora todas as impurezas que lhe habitavam, Raimunda escrevia algumas poesias, e encontrava nelas uma forma de se comunicar com o mundo.
Raimunda nunca foi moça de frequentar bibliotecas, nem conhece os grandes homens da literatura. Escreve como quem descasca laranjas. Sem medo de cometer equívocos de linguagem, sem medo de trocar acentos, de esquecer vírgulas. Escreve aquilo que tem vontade de dizer. E de alguma maneira a mulher mais feia da cidade, sentada em um vaso de privada, enquanto defeca a janta gordurosa preparada por sua mãe, escreve algumas coisas que valem a pena serem ditas, como quem colhe rosas em um chiqueiro.
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A (Nem Sempre) Prolixa Arte de Escrever

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- por Arthur Schopenhauer

"Assim, a primeira regra do bom estilo, uma regra que praticamente se basta sozinha, é que se tenha algo a dizer. Ah, sim, com isso se chega longe! Mas a negligência com relação a essa regra é um traço característico e fundamental dos filósofos e, em geral de todos os escritores teóricos na Alemanha, especialmente desde Fichte. Em tudo o que eles escrevem, percebe-se que pretendem parecer que têm algo a dizer, quando não têm coisa alguma. Essa maneira de escrever, introduzida pelos pseudofilósofos das universidades, pode ser observada facilmente e mesmo entre as mais destacadas celebridades literárias desta época. Ela é a mãe tanto do estilo forçado, vago, ambíguo e mesmo plurívoco, quanto do estilo prolixo, pesado, o style empesé, e também da torrente inútil de palavras e, finalmente, do ocultamento da mais deplorável pobreza de pensamento sob uma tagarelice infatigável, ensurdecedora, atordoante. No caso de tais estilos, uma pessoa pode ler por horas a fio sem capturar nenhum pensamento preciso e claramente exposto. Quem tem algo digno de menção a ser dito não precisa ocultá-lo em expressões cheias de preciosismos, em frases difíceis e alusões obscuras, mas pode se expressar de modo simples, claro e ingênuo, estando certo com isso de que suas palavras não perderão o efeito. Assim, quem precisa usar os artifícios mencionados antes revela sua pobreza de pensamentos, de espírito e de conhecimento.
Enquanto isso, a resignação alemã se acostumou a ler amontoados de palavras daquele tipo, página por página, sem saber direito o que o escritor realmente quer dizer. As pessoas acreditam que as coisas devem ser assim mesmo e não chegam a descobrir que ele escreve apenas por escrever. Em contrapartida, um bom escritor, rico em pensamentos, conquista de imediato entre seus leitores o crédito de ser alguém que, a sério, realmente tem algo a dizer quando se manifesta; é essa atitude que dá ao leitor esclarecido a paciência de segui-lo com atenção. Justamente porque tem algo a dizer, tal escritor se expressará sempre da maneira mais simples e precisa, uma vez que pretende despertar no leitor exatamente o pensamento que tem naquele momento, e nenhum outro.
Uma outra característica deles é a de evitarem, quando possível, todas as expressões precisas, de modo que possam sempre tirar a corda do pescoço, quando necessário. Assim, eles escolhem, em todos os casos, a expressão mais abstrata, enquanto as pessoas de talento escolhem a mais concreta porque ela expôe o assunto à claridade, que constitui a fonte de toda a evidência.
Pessoas de talento, por sua vez, dirigem-se realmente a nós em seus escritos, e por isso são capazes de nos animar e entreter: apenas elas combinam as palavras com plena consciência, com critério e intenção. Desse modo, sua exposição estabelece, com a que foi descrita antes, uma relação semelhante à de um quadro pintado com um que foi impresso com um molde. No caso, há uma intenção especial em cada palavra, assim como em cada pincelada; no outro, em compensação, tudo foi feito mecanicamente.
Quem escreve de modo afetado é como alguém que se enfeita para não ser confundido e misturado com o povo; um perigo que o gentleman não corre, mesmo usando o pior traje. Assim como se reconhece o plebeu por uma certa pompa no modo de se vestir e pelo jeito embonecado, a mente trivial é reconhecida pelo seu estilo afetado.
Quando um pensamento correto desponta numa cabeça, ele se esforça em direção à claridade e logo a alcança, para em seguida o que foi claramente pensado encontrar com facilidade uma expressão adequada. O que uma pessoa é capaz de pensar sempre se deixa expressar em palavras claras e compreensíveis, sem abiguidade. Aqueles que elaboram discursos difíceis, obscuros, dubitativos e ambíguos com certeza não sabem direito o que querem dizer, mas têm uma consciência nebulosa do assunto e lutam para chegar a formular um pensamento. No entanto, com frequência, essas pessoas querem esconder de si mesmas e dos outros o fato de que na verdade não têm nada a dizer."
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O Fim é Só o Começo

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"Se o meu médico me dissesse que eu teria apenas seis minutos para viver, eu não ficaria remoendo. Eu digitaria um pouco mais rápido." (Isaac Asimov)

Eu estou cercado por todos os cantos. É o fim. Não posso dar mais nenhum passo. McLuhan tinha razão.
Tudo começou com um simples preenchimento de cadastro. Eu me lembro que aquilo prometia não tomar muito do meu tempo. E então o orkut começou a querer saber sobre quem eu era, o que eu fazia, do que eu gostava, aonde eu morava e quem eram os meus amigos. O orkut me interrogava e a partir daquele momento eu estava me transformando num arquivo. Num doc. Num ponto-alguma-coisa. Com o tempo o negócio foi só piorando e eu comecei a me envolver de uma maneira ainda mais perigosa.
Comecei a contar pra todo mundo qualquer coisa que acontecesse na minha vida, ou qualquer coisa que passasse pela minha cabeça. O twitter seguia cada passo que eu dava. Um simples vou ali e já volto era suficiente. E ele ainda fazia questão de me passar relatórios sobre tudo o que se passava na vida das outras pessoas. O twitter era exigente e mesmo que eu criasse uma complexa teoria a respeito do funcionamento das coisas, que poderia me render a publicação de um livro ou a conquista de um prêmio internacional, ele só me dava um espaçozinho de cento e quarenta caracteres para explicar tudo com detalhes. E nenhuma vírgula a mais.
O negócio estava indo de mal a pior. Eu estava sendo dominado pelas agá-te-te-pês. Depois de um tempo deixei de enviar cartas pelo correio e comecei a perder horas do meu dia reenviando para todos os contatos da minha conta de email milhares de correntes virtuais, mensagens de fé e esperança, piadas, teorias da conspiração e mais um monte de besteira. Deixei de comprar jornais em bancas de revista para dar uma chance aos portais virtuais, que me enfiavam goela abaixo um milhão de informações através de imagens, manchetes, links e textos curtos. Abandonei as lojas de disco e as videolocadoras por downloads ilegais. E se num determinado momento de descuido colocasse pra tocar a pasta de música da minha irmã mais nova, o lastfm não pensava duas vezes antes de sair por aí falando que eu era o mais novo emo do pedaço. E ainda aparecia um monte de gente estranha querendo ser meu amigo e revelando suas compatibilidades, que não tinham nada a ver com o meu universo.
Chegou um momento em que eu não podia tirar uma mísera foto sem que o flickr não soubesse. Se fosse num aniversário de casamento de um parente qualquer e filmasse um desses momentos descontraídos aonde as pessoas bebem, dançam e falam à vontade, aquilo logo ia parar nas mãos do youtube. Se fosse no cinema com a minha namorada só pra trocar uns beijinhos, tomar guaraná e comer pipoca, numa dessas comédias românticas despretenciosas, era a vez do flixster me colocar na parede até que eu revelasse a minha opinião sobre o filme. Não podia trocar uma palavrinha com os meus amigos sem que o msn não quisesse salvar a conversa. E se estivesse lendo um livro qualquer, ou abandonasse de forma imperdoável um clássico na página quarenta e quatro, não demorava muito tempo para que o skoob saísse por aí avisando todo mundo.
Eu estava preso àquela bolha uniforme e globalizada. E ainda teria que aprender a conviver com o myspace, o facebook e o multiply, com a microsoft, a apple e o google. O mundo aos poucos estava sendo dominado por uma onda social high tech e o preço por aquilo haveria de ser a nossa total liberdade.
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São Paulo 3x4

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São Paulo é a maior cidade do Hemisfério Sul. 10.990.249 pessoas vivem nas 3.039.104 residências espalhadas pelos 2.000 bairros de toda cidade. 11% dessa população vive nas 1.363 favelas espalhadas pela capital. 5% não sabe ler nem escrever. 12% não tem acesso à rede de esgoto. 10.394 são moradores de rua. E 1 milhão vive abaixo da linha de pobreza. Apesar disso, a capital paulista é a 19ª cidade mais rica do mundo e a 25ª mais cara. 60% de todos os milionários do país residem em São Paulo. A cidade representa 12,26% de todo PIB do Brasil.
A capital paulista possui 6 milhões de automóveis que circulam os 15.600 km de ruas e atravessam os 5.500 cruzamentos com semáforo todos os dias da semana. Tem a terceira maior frota de táxis da América Latina - são mais de 30 mil. E a segunda maior frota de helicópteros, com 210 helipontos espalhados pela cidade. 66 mil pessoas passam diariamente pela Rodoviária do Tietê, a maior da América Latina. O metrô de São Paulo transporta 3 milhões de pessoas todos os dias, com 117 trens em mais de 62 km de extensão nas 4 linhas do sistema. Os 110 trens disponíveis pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) realizam 1.688 viagens por dia, nas seis linhas do sistema, atendendo 22 municípios da região metropolitana. São 15.000 ônibus circulando pelas 984 linhas da cidade. A linha de ônibus mais longa é a 3.310, que sai do Terminal Amaral Gurgel até Cidade Tiradentes; percorrendo 103 km.
Há 125.000 ruas na região metropolitana de São Paulo. 4.408 praças. 400 monumentos em vias públicas. 205 hospitais, dentre os quais o Hospital Albert Einstein, o mais avançado de nosso continente. São 530 mil postes de iluminação. 1.500 agências de bancos nacionais e internacionais. 104 mil orelhões.
A cidade de São Paulo possui 240 mil estabelecimentos comerciais. São 12.500 restaurantes e 15.000 bares. 70 shopping centers que recebem 30 milhões de pessoas por mês. 50 mil salões de beleza. 5.000 pizzarias que produzem 1 milhão de pizzas por dia. As padarias de São Paulo produzem 7.200 pães por minuto. A Rua Vinte e Cinco de Março, maior comércio popular da América Latina, recebe meio milhão de pessoas todos os dias. O Bairro Bom Retiro produz 55% de toda moda feminina nacional. E o Mercado Municipal movimenta 350 toneladas de alimentos por dia. A cada segundo são realizadas 10 compras através de cartão de crédito e débito na cidade de São Paulo.
A Rua Oscar Freire está entre as 8 mais luxuosas do mundo, e atende os 30.000 milionários que residem em São Paulo. No bairro do Itaim existe uma oficina especializada somente em Ferraris. A cidade é a maior realizadora de eventos da América Latina, e a 18ª do mundo, com 70 mil eventos realizados por ano. Existem 120 Teatros e Casas de Show, 208 cinemas, 71 museus e 39 centros culturais em São Paulo. São 100 peças produzidas por semana na capital paulista; 4.800 por ano. A Pinacoteca do Estado abriga 4.000 obras de artistas nacionais. E o Museu do Ipiranga reúne mais de 125 mil objetos desde a época imperial. São Paulo é responsável por 28% da produção científica nacional e registra anualmente 230 mil matrículas de alunos em Universidades. São 2.725 estabelecimentos de Ensino Fundamental. 2.998 de unidades pré-escolares. 1.199 escolas de Ensino Médio. E 146 instituições de Ensino Superior. 68,11% dos paulistanos são católicos. 15,94% são evangélicos. 2,75% são espíritas. 0,65% são budistas. 0,36% são judeus. E 8,97% não possuem religião.
São Paulo é uma cidade formada por nordestinos, italianos, japoneses, coreanos, espanhóis, libaneses e portugueses. A maior parte do fluxo migratório vem de Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Bahia e norte de Minas Gerais. 68% dos paulistanos são brancos, 25% são pardos, 5,1% são negros, 2% são amarelos e 0,2% são indígenas.
São Paulo é uma cidade de opções. De pessoas que andam apressadas pelas ruas. De indigestos que tomam banho de sol nas praças públicas. De crianças desdentadas e mães gordas que se equilibram no vai-e-vem dos ônibus. De feirantes, cobradores, motoqueiros, compradores de ouro, garçons, putas, marginais e poetas. O centro velho de São Paulo e as regiões das marginais fedem o cheiro acre dos rios, do suor dos camelôs, dos banheiros públicos, da comida estragada, das construções abandonadas. São Paulo é uma cidade de desconhecidos, de corações solitários na multidão, de gente com cara rachada que anda de sombrinha debaixo do sol.
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Parábola da Parabólica

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"Cristo morreu cedo demais. Se tivesse vivido até a minha época, ele teria repudiado a sua doutrina." (Nietzsche)

São oito horas da noite. João chega em casa cansado do trabalho. Há três dias chove sem parar e seus pés estão ensopados. No ônibus a caminho de casa ouviu duas senhoras comentando de que esse seria o fim dos tempos. João não acredita nessa coisa de fim dos tempos; e enquanto pensa a respeito disso, caminha na direção do sofá com suas meias enxarcadas. Sua mulher reclama na cozinha de que seu filho mais novo havia recebido um bilhete de advertência na escola pela terceira vez no ano. João trabalha como segurança de uma empresa de grande porte na zona industrial da cidade. Passa doze horas por dia em pé, segurando uma arma na altura da cintura e convivendo com o tédio, as dores na altura do tornozelo e o silêncio das horas que não passam. Em treze anos de profissão nunca precisou usar a arma, a não ser uma vez quando ameaçou um bêbado que tentava pular o muro que divide a empresa da rua de asfalto. A última coisa que João quer na sua vida é apertar o gatilho ou ter que conviver com as reclamações de seu filho mais novo ao chegar em casa cansado do trabalho.
Com os pés sobre um puff cor de abóbora que ganhou da mulher no aniversário de quarenta e três anos, João aperta o controle remoto para dar início à transmissão do Jornal Nacional, naquela caixa preta de vinte e nove polegadas cravada na estante de sua sala, comprada em doze prestações em uma loja do centro da cidade. João ainda era um menino quando ouviu no rádio o presidente do Brasil dizer que se um fato não havia sido noticiado no Jornal Nacional era porque ele não havia acontecido. E desde então, religiosamente, as suas atenções estão voltadas para a televisão naquele mesmo horário - para ouvir as notícias que a maior rede de televisão de seu país tinha preparado pra ele.
- Boa noite - diz o apresentador do jornal que invade as telas de sessenta por cento de todos os televisores ligados no brasil naquele horário - o juíz Gláucio de Araújo da 9ª Vara Criminal de São Paulo abriu ação criminal contra o fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, Edir Macedo, e mais nove pessoas ligadas a ele por lavagem de dinheiro e formação de quadrilha.
A câmera muda para sua mulher, também jornalista e companheira de bancada há mais de onze anos.
- Segundo a denúncia da promotoria, Edir Macedo e os outros acusados desviaram dinheiro de doações de fiéis e se aproveitaram da isenção de impostos oferecidas à igrejas de qualquer culto, determinada pela constituição.
Nesse momento quase todos os olhos e ouvidos do Brasil estão voltados para a guerra midiática decretada pela quarta maior emissora do mundo à igreja neopentecostal que mais cresce na américa latina, e que controla a segunda grande emissora do país, sua maior concorrente - a Rede Record de Televisão. A alta cúpula da igreja deveria estar naquele momento andando de um lado para o outro, em uma sala de reuniões aonde seria decidido qual seria o contra-ataque.
João não acredita em Deus desde que tinha dezessete anos, quando perdeu um irmão assassinado, mas sua mulher frequenta o templo da Igreja Universal do Reino de Deus construído há duas quadras de sua casa. Há algum tempo boa parte de seu salário é direcionado para os sacos de recolhimento de ofertas nos cultos de domingo, e para o dízimo. João lamenta profundamente aquelas horas de trabalho que não serviram para nada.
- Se Deus é o caminho, Edir Macedo é o pedágio.
E então ele muda de canal com aquela sensação de que se não bastasse o mundo inteiro ser enganado por aquela estórinha pra boi dormir contada na bíblia, o seu bolso pagava caro para sustentar aquelas mentiras todas. Na Rede Record ele tem a triste sensação de que o dinheiro do suor de seu trabalho havia parado na conta bancária daquele apresentador, que sorria de terno e gravata tentando lhe vender uma pasta de dente vagabunda, usada por pessoas como ele que não tinham dinheiro para comprar pastas de dente indicadas pelos dentistas.
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Deixa Ela Entrar

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DEIXA ELA ENTRAR (Låt den Rätte Komma In). 2008. Suécia. Dirigido por Tomas Alfredson. Com Kåre Hedebrant, Lina Leandersson. IMDB - 8.1. Trailer.

Quando Stephanie Meyer lançou Crepúsculo há quatro anos atrás, livro que se tornaria fenômeno de vendas entre o público jovem, se aproveitando do espaço deixado com o fim da saga de Harry Potter, uma onda vampiresca começaria a assombrar o mercado cultural pelos quatro cantos do mundo. Os seres mais sombrios e sedutores da mitologia sairiam do ostracismo dos últimos anos para ganhar vida nas prateleiras de livrarias, videolocadoras, nos canais de televisão e em outros veículos de entretenimento. Diversos livros sobre o assunto, de autores consagrados, ganhariam uma nova chance editorial; e um novo material vampiresco pode ser construído. No entanto, de tudo o que foi produzido dentro desse universo em particular, nada me surpreendeu e sensibilizou mais do que o filme sueco 'Deixa Ela entrar' (Låt Den Rätte Komma In), do diretor Tomas Alfredson.
Logo de início somos apresentados ao garoto Oskar (Kåre Hedebrant), um menino de doze anos, introspectivo e solitário, que convive com a humilhação e o desgosto de ser saco de pancadas dos outros rapazes de sua idade. Oskar parece condenado à solidão até conhecer Eli (Lina Leandersson), sua mais nova vizinha, uma menina de hábitos estranhos que aparenta ter a mesma idade que a dele e os mesmos problemas de sociabilização. O cenário gelado da suécia poderia ser só mais um palco para que duas pessoas sozinhas e carentes se cruzassem, como ocorre pelas esquinas do mundo inteiro, se não fosse pelo fato da menina em questão ser uma vampira.
Conforme se torna evidente a solidão que os acompanha e suas proximidades, apesar da diferença de maturidade de alguém que possui doze anos e alguém que possui doze anos há muito tempo, Oskar e Eli constroem uma relação de uma beleza sentimental sem tamanho, como poucas vezes pude presenciar nas telas de um cinema. A carga histórica e esteriotipada a respeito do universo dos vampiros é respeitada sem exageros fantasiosos. Eli permanece trancafiada dentro de seu quarto durante o dia, sem se permitir à exposição do sol, se alimenta exclusivamente de sangue humano e não invade ambientes sem receber a permissão para isso - como se refere o título do filme. Mas são as sutilezas dos detalhes que fazem com que 'Deixa Ela Entrar' se transforme numa pequena obra de arte que permanece trancafiada em nossas cabeças por algum tempo depois de sua exibição.
O filme é baseado no livro lançado na suécia há cinco anos atrás (um ano antes do fenômeno comercial norte americano), escrito por John Ajvide Lindqvist, que também assina o roteiro do longa. Exibido pela primeira vez no brasil na última Mostra de Cinema de São Paulo, arrancou quase sessenta prêmios internacionais pelos festivais por onde passou.
'Deixa Ela Entrar' será adaptado para hollywood com a direção de Matt Reeves (Cloverfield), e o remake tem previsão para lançamento para o final de 2010. O cenário gelado da Suécia dará lugar ao estado do Colorado, nos Estados Unidos, e será ambientado nos anos oitenta, durante o governo Reagan. O que nos mostra que a onda vampiresca que assombra o mundo do entretenimento só não é maior do que a falta de criatividade dos estúdios de Hollywood, que destroem, ano após ano, preciosidades do cinema asiático e europeu pouco divulgadas entre o público mainstream, com os seus clichês com cheiro de moeda de caça níquel.
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Limpe Bem os Ouvidos Antes de Ouvir

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Os 10 álbuns que mais influenciaram a minha educação musical.

1] K-Os - Atlantis Hymns for Disco (2007)
É muito difícil falar sobre alguém que a gente ama tanto sem cair no risco de cometer alguns clichês, se empolgar no meio do caminho, e se emocionar com determinadas lembranças que marcaram uma determinada época. O fato é que K-os nasceu a frente do seu tempo.
Atlantis Hymns for Disco é o álbum de uma vida inteira. Um tutorial sobre como fazer música negra sem deixar a peteca cair.
Ouça - The Rain, Born to Run, Black Ice - Hymn for Disco

2] Dave Matthews Band - Listener Supported (1999)
Dave matthews band é a maior banda do mundo.
Dave matthews é perito em concertos para grandes multidões. Já lançou um milhão de discos duplos e triplos em arenas, parques e estádios espalhados pelo mundo inteiro. Mas se podesse escolher um álbum que sintetizasse sua carreira seria o Listener Supported. Pelo repertório, pela engenharia de som, pela inspiração dos músicos.
Ouça - #41, Crash Into Me, The Stone


3] Jason Mraz - We Sing. We Dance. We Steal Things. (2008)
Jason Mraz cresceu. Acompanho a carreira desse menino desde muito cedo - quando ele ainda abria os shows da Dave Matthews Band com seu inseparável amigo Toca Rivera.
We Sing. We Dance. We Steal Things. é o grande álbum de sua carreira e difícilmente será superado. A propósito, o dvd Tonight Not Again que acompanha a edição limitada norte americana é impecável.
Ouça - Details in the Fabric, The Dynamo of Volition, Make it Mine

4] Afro Cuban All Star - A Toda Cuba Le Gusta (1997)
O guitarrista Ry Cooder viajou à Havana em 96 para tentar resgatar alguns nomes do cenário local para produzir um disco, depois de décadas de censura do governo Castro. O resultado foi documentado pelo diretor alemão Win Wenders através do filme Buena Vista Social Club e rodou pelo mundo.
A Toda Cuba le Gusta é o álbum de estréia do grupo Afro Cuban All Star, projeto paralelo produzido pelos mesmos músicos do Buena Vista, e abriu as portas para que o cenário latino americano pudesse invadir o meu universo musical.
Ouça - Classiqueando com Ruben, Fiesta de la Rumba, Los Sitios Asere

5] Florence And The Machine - Lungs (2009)
Florence And The Machine foi o maior acontecimento musical do ano de 2009. Antes mesmo do lançamento do álbum, o seu debut, já havia virado febre na internet e abocanhado o prêmio da crítica no Brit Award. A inglesinha chegou a atingir o segundo lugar entre os álbuns mais vendidos da Inglaterra - perdendo apenas para Michael Jackson, nos dias posteriores a sua morte. Lungs é uma obra de arte.
Ouça - Cosmic Love, Rabbit Heart, Dog Days Are Oves


6] O Rappa - O Silêncio Q Precede O Esporro (2003)
O Silêncio Q Precede O Esporro é uma peça musical feita pela maior banda da história da música brasileira. Tom Capone e o grupo carioca preenchem cada espaçozinho do álbum com muita melodia e lirismo, em arranjos desafiadores. Tive a oportunidade de acompanhar o show da banda na turnê do álbum. Desde o primeiro acorde não há equívocos.
O Rappa apresenta uma qualidade musical inquestionável. Seja na engenharia de som de seus álbuns, na produção de seus shows, na composição de suas músicas ou nas filmagens de seus video clips. Esse é o seu trabalho mais maduro.
Ouça - Linha Vermelha, Óbvio, O Salto

7] Esthero - Wikked Lil' Grrrls (2005)
Jean-Bea ainda era uma menina de dezesseis anos quando se mudou de sua cidadezinha no interior do Canadá para tentar a carreira musical em Toronto. Foi então que ela conheceu o multi instrumentista Martin McKinney - também conhecido como Doc - que abraçaria o seu sonho e lhe transformaria em Esthero.
Como um prato Wikked lil' Grrrls, seu segundo álbum, mistura hip hop com jazz, ao molho de um r&b e algumas pitadas de ska. Esthero não tem medo de fazer uma salada musical que sussurra em nossos ouvidos como um deleite afrodisíaco.
Ouça - We R in Need of a Musical Revolution, Everiday is a Holiday Whit You, Wikked lil' Grrrls

8] Nelly Furtado - Folklore (2003)
Folklore é o álbum mais alternativo (e, por sinal, o menos vendido) de Nelly Furtado. Depois de estourar com Whoa, Nelly! três anos antes e de faturar o Grammy com o single Like a Bird, a cantora canadense que, assim como Esthero, havia se mudado para Toronto ainda adolescente para tentar música pois era "..o lugar onde se encontra tudo, onde se pode ser tudo", apresenta a fase mais madura de sua obra, resgatando alguns estilos de suas origens portuguesas.
(Loose, seu álbum posterior, apesar de ter conseguido alcançar o topo das paradas de sucesso pelo mundo, representa o lado promíscuo (!) de uma carreira, até então, com muita identidade musical.)
Ouça - One-Trick Pony, Fresh off the Boat, Childhood Dreams

9] Alicia Keys - Songs In A Minor (2001)
Alicia Keys, cantora e pianista de mão cheia, é a imagem do r&b dessa década. Songs in a Minor é o debut de uma carreira que vendeu, até então, mais de trinta milhões de discos e já faturou dez Grammy's. A menina que nasceu na periferia de Nova Iorque e que, na minha humilde opinião, se tornou em uma das mulheres mais lindas do mundo, aprendeu a tocar piano desde muito cedo influenciada por sua mãe. O álbum foi um arrasa quarteirão pra crítica especializada - que tratou de comparar Alicia a grandes ícones do soul norte americano-, e pro público. O álbum ainda é seu grande sucesso comercial, com mais de doze milhões de cópias vendidas.

10] John Mayer - Room For Squares (2001)
Room for Squares é o primeiro álbum do cantor norte americano John Mayer e seu trabalho mais cool. Curiosamente John, que já passou por diversas fases ao longo de sua carreira, utiliza muito pouco sua guitarra no álbum de estréia - John Mayer é um dos maiores guitarristas do mundo. Mas, ainda assim, particularmente vejo em Room for Squares seu lado mais bacana.
O álbum lhe rendeu o Grammy de melhor performance vocal por Your Body is a Wonderland, hit que embalou boa parte da minha adolescencia. Mayer tem altos e baixos em sua carreira, mas esse é um álbum que não pode ser esquecido.
Ouça - Your Body is a Wonderland, Neon, St. Patrick's Day